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sexta-feira, 4 de março de 2016

Te vejo e não te enxergo

Te vejo e não te enxergo
1º Ato – 1ª pessoa – Apresentação do drama
1
Do auto da janela
Dentro da minha casa
Eu vejo em Curitiba
Seres de cova rasa
2
Quem mais me assusta
Pelo seu jeito de bicho
Pouca roupa sempre sujo
É o ser que remexe o lixo
3
Mas não é bicho não,
É gente, sim senhor!
Uma espécie diferente
Q ue Curitiba criou.
4
E tanto faz se é no centro
onde mora o poder,
Ou se é na periferia,
A rua faz sofrer.
5
Na cidade de Curitiba
Tem rios de montão
“Sem Nomes” se refugiam
Do Centro até o Portão.
6
E têm muitos na cidade
seres de cova rasa    
É o morador da rua
Eu sou o morador de casa.

2º ato – 1ª pessoa – dirigindo-se ao morador de rua.
7
De onde vem, pra onde vai,
Pelas ruas dessa cidade,
Carregando esse destino
Cheio de necessidade?
8
Te vejo todo santo dia
Cumprindo uma sina, com ou sem fé,
Carregando uma baita cruz
Que nem tua é.
9
Seguindo o curso do rio
Indo pra lá e vindo pra cá
Serpenteando a cidade
Sem ter um único lugar.
10
Nunca escutei tu gemer
Andar na rua batendo panela
Nem chacoalhar bandeira
Ou chorar... Da minha janela.
11
No sentido contrário
Você é um assassino,
Sinto uma faca no peito quando dizes:
- tô com fome, menino!
12
Nas noites te vejo coberto
Com lençol de estrelas,
Cobertor de brisa,
E ainda sonhas com noites belas!
13
Eu não entendo!
Por que tens a “cabeça dura”?
Ser o único a viver uma lógica
testemunhar com a vida, na rua.
14
Dizem que nada sabe,
Que são analfabetos.
Que não conhecem o pingo do i
E por isso são incorretos!

3º ato – morador de rua e Deus
15
Quem foi que te pariu?
E Deus? Porque não pergunta de anjos?
Porque todo crente vem te oferecer
Oração e tudo que é Santo?
16
(Gargalhada) É muito legal cara!
“Coitadinho, Deus te protege até de cobra!”
Tu desse um coice de mula nesses crentes
Porque tens Deus de sobra.
17
É isso mesmo!
Tu tens Deus de sobra.
Eu tenho a minha religião
Minha igreja, minha obra.
18
Vou sempre à igreja
E nem tenho tanto Deus assim.
Ao invés de rezar por você
Posso pedir que rezes por mim?
19
Não te disse que tens Deus?
Por isso covardes te odeiam
Eles têm padre, pastor, guru,...
Muita igreja e pouco Deus.
20
Mas mesmo assim
Eu sinto tua dor, teu sacrifício,
E choro ao saber
Nem podes escapar disso.
21
Vai, devolve essa cruz,
Porque aceitar os insultos?
Porque pagar o pecado dos covardes?
Dos homens e mulheres vultos?
22
Sabe, é por isso que vejo,
Golas clericais, engravatados,
Vereador, cristão, sofista,
Tirar foto contigo abraçados.
23
Muita reza de ladainhas
São rezadas de verdade!
Nas casas, não nos templos,
La não entram os mendigos da cidade.
24
Tu já entraste numa igreja pra rezar?
Primeiro vem a lista de intenção.
Reza-se pelos obreiros e autoridades.
Quem mandou ser mendigo, ficou na mão.
25
Numa casa, vi uma mulher rezando
Tinha homem também
Ladainha pra La de metro
Dos anjos não escapou ninguém.
26
Tua vida é uma baita ladainha
E tem contas sem fim,
Contas de rosário, de terço,
Deus não escapa de ti
27
Tu tens Deus demais
Embaixo desse céu onde mora.
No chão e na calçada, tuas camas,
Confias em Deus e não chora.

Morador de Rua e o povo
28
Todas as catervas de Curitiba
Abrigam-se, se protegem do frio.
Ao redor do fogão, perto da lareira,
E pra tu, sobrou a beira do rio.
29
Meus cães são treinados pra morder.
Incomodar a vizinhança inteira,
Quando um ladrão tentar atacar
E minhas coisas querer ter.
30
Que vida boa tem teus cães!
Nada tens pra proteger
Já os meus, belos ou ferozes,
Nem a vida de cães podem ter.
31
Veja só o tamanho da minha estrutura!
Já tu, o céu é teu telhado e cobertor.
A noite é tua varanda,
De onde contempla o teu senhor!
32
Muitas vezes eu vi você abraçado
Ao teu igual que nem é parente.
Repartindo estrelas e luar
Que não são tuas não te pertence!
33
Mas ouço demasiadamente,
Que tu és sujo e imundo
E as respostas prontas te condenando
“Vai trabalhar vagabundo!”
34
Vejo-te rindo da vida,
Vivendo a lógica inversa do amar,
Da teoria da conspiração
Daqueles que dizem “tudo vai piorar”.
35
Piorar o quê?
Melhorar aonde?
O erro é o indivíduo
Que dentro de casa se esconde.
Morador de rua e a infância
36
Te vejo pequeno
Ainda criança
Tua mãe te embalando, rezando,
Na primeira infância:
37
“mãezinha do céu
Eu não sei rezar
Só sei dizer
Quero te amar...”
38
Tua mãe quietinha
Te embalando
E teu pai num canto
Bêbado, babando.
39
Mas tua mãe se foi
Não é mesmo irmão meu?
E tu ficou sem ninguém
Aos cuidados do mundo e de Deus.
40
Afinal, qual pai bêbado
Tem responsabilidade?
É muita coisa criar um menino
Nos porões dessa cidade!
Morador de rua e a política
41
Que ato político é esse?
Porque tanta neutralidade?
Você não reclama, não reivindica,
Iguais certos indivíduos nessa cidade.
42
Sabia que todo ato de mendicância
É um ato por político evitado?
E é muito mais eficiente
Que discursos articulados?
43
Hein! Eu  to perguntando!
O que você sabe sobre tua condição?
Essa vida complexa
Que desafia nossa razão?
44
Da minha sacada, sentado,
Vigiando esses sem nome
Observando
Os parceiros da fome.
45
Não foste tu que me disse um dia
rico não é quem tem dinheiro,
É quem não passa fome?
Mas é o rico quem come primeiro.
46
Lembra quando me perguntou,
O que comem os ricos do Portão?
E os do centro de Curitiba
Esses devem ter comida “amiguelão”!
47
Mas, lembro também da pergunta.
E como morrem? É cova funda ou rasa?
Dentro de um rio não são jogados
Não se enterra dentro de casa!
48
Na rua nada tu tens
Nem território, nem lugar,
Essa luta sem freio e injusta
Fazem as pessoas morrer de trabalhar.
49
Nunca te vi disputar território.
Mesmo se te vejo numa sacada do Batel
De noite tu desapareces do bairro nobre
Só te vejo de dia catando papel.
50
Sempre repousando na ponte
no centro de Curitiba,
nos arredores da cidade
Na periferia da vida.
51
A selva de pedra de Curitiba
Foi a floresta que escolheste pra se perder?
E só por isso não tem saudades
Da casa, nem do que sonhavas ser ?
52
Qual é o teu saber?
O que sabes sobre afeto?
O que te causa prazer ou dor?
Porque só ficas quieto?
53
É isso que incomoda!
Teu silencio.  É quase um desacato.
Quem tem coisas fala muito
E você, na perfeição do ato.
54
Todo o dia desafias a cidade
Debaixo de marquises, calçadas,
Dos toldos que pouco protegem,
Onde tudo expõe tua alma lavada.

Eu e o morador de rua

55
E eu aqui, como louco, em quatro paredes,
Dormindo abraçado com o contrato social,
Meus pertences, minhas coisas num papel,
Grades, alarmes, estratégia policial.
56
Diga-me, ser das ruas,
Que tipo é sua vontade de poder?
Estas mesmo além do objetivo da vida?
Ou nada nesse mundo desejas ter?
57
Deixa-me ver teu rosto
Quero provar se me defino humano
Deixa ver teu rosto
Não deixe que eu negue meu ser profano.
58
Vejo nesse teu jeito inferior
A prova da nossa igualdade
Se tirasse de mim o que nada vale
Ficaríamos iguais, a essência da simplicidade.
59
Tua simplicidade te faz superior
E prova de que não tenho liberdade
Eu não tenho inveja de ti, nem te odeio
Te respeito com sinceridade.
60
Pra onde vais, em Curitiba?
Onde pretendes chegar?
Já te vi em todos os bairros
Onipresente, a me olhar.
61
Na saída do shopping
Na entrada do supermercado
No farol vermelho
Em todos os lados.
62
Mas, eu te vejo sempre
Da minha sacada
Da janela do meu prédio
Tombando lata...
63
É mais confortável  lá de cima.
Não sinto teu cheiro
Não vejo tua pele crostrada
Teu cabelo e barba desalinhada.
64
Na verdade, você nunca me vê
Sigo cumprindo minha sina, com e sem fé,
Carregando uma cruz
Que nem sei se minha é.
65
Morador de rua,
Sujeito sem jeito, sem nome
Sabe Deus se sabe o que é sujeito
E se sabe, esqueceu, só sabe que passa fome.
66
Sujeito danado, as vezes irado
Vai e vem, sobe e desce a rua
De noite, Iluminada por postes
Só dá pra ver um lambido da lua.
67
É ai que te vejo
O corpo arquejado
Na ponte da rua escura
“Catando frango”, esfomiado.

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